Artigo originalmente publicado no
Estadão Noite
Renato Dias Baptista*, O Estado de
S.Paulo
"A
honestidade pode vencer a peste e também pode vencer a corrupção" Foto:
marce/Morgue File
Os livros contêm os momentos da humanidade, representados
por meio de relatos circunstanciados, de analogias ou de alegorias. A alegoria,
a propósito, pode originar do autor ou de seus leitores. Neste último aspecto
reside a proposta deste artigo. A ideia ocorre em circunstâncias pós-eleição
presidencial e pós-leitura do livro ‘A Peste’, de Albert Camus. A obra,
publicada em 1947, narra os relacionamentos humanos no decurso de uma peste.
Para construir a alegoria, utilizei frases – algumas com adaptações - desse e
os manterei em itálico como crédito ao autor.
O
tempo descrito por Camus demonstra perenizar e estar à espreita e sedento por
vínculos. E este é o momento da conexão não aleatória, um tempo carregado por
um descontentamento generalizado com a corrupção. A descrença na política que
ora é asfixiada pela crença naqueles que se comprometem em extirpá-la, ressurge
cambaleante e sem direção e faz renascer a mágoa na população. Uma população
cansada sente que está distante daquilo que mais deseja. Sim, o amor
desaparece porque o amor quer coisas futuras e o futuro parece
nebuloso.
A
corrupção é a peste dos tempos atuais. Seria melhor um terremoto,
porque após os abalos contam-se os mortos e não se fala mais nisso, mas a peste
mata todos os dias. Ela está ali nos jornais, num descritivo sem fim como
um jornal da epidemia. Contudo, a corrupção tal qual a
peste tem o seu lado bom porque abre os olhos e obriga a pensar. Se nós
convivemos nesta realidade é possível que tenhamos alguma responsabilidade,
visto que isolamos alguns ratos e esquecemo-nos da contaminação. É preciso
dizimá-la ao mesmo tempo em que tentamos entender o lado obscuro daquele ser
humano contagiado por ela. Quando se vê os efeitos que ela traz é
preciso ser covarde para se resignar.
Não
podemos nos acostumar com a narração diária da corrupção veiculada na mídia,
porque se pode chegar a um tempo em que as pessoas perceberão isso como uma
abstração. Quando esse dia chegar, aqueles que corrompem terão controle
absoluto, e neste cenário está localizada a censura da informação. Chegará
uma hora que quando alguém disser que dois mais dois são quatro, este alguém
poderá ser punido.
A
honestidade pode vencer a peste e
também pode vencer a corrupção. E até o dia em que isso ocorra, não adianta
sentir pena, seja da sociedade ou de si mesmo, tampouco se manter subserviente,
já que as pessoas cansam da piedade quando a piedade é inútil.
É
difícil dizer qual é o limite de tolerância da sociedade em relação à
corrupção. Mas sabemos que a consciência surge na ruptura, no limite.
Também devemos reconhecer que essa consciência não está no jornalismo
declaratório, mas nos incontestáveis resultados de investigação.
No
mundo descrito por Albert Camus, o ambiente somente foi reconhecido com o
surgimento dos ratos. E lá, como aqui, os ratos já estavam presentes, eles
apenas se tornaram evidentes. “A peste nada mais era para eles do que uma
visita desagradável que havia de partir um dia...”
*
Renato Dias Baptista
é professor assistente doutor do curso de Administração da Universidade Estadual
Paulista, Unesp, Câmpus de Tupã.
E-mail: rd.baptista@unesp.br